Os psicadélicos têm má fama, associada ao consumo recreativo dos anos 60. Mas são cada vez mais usados em saúde. A quetamina, além de ser um anestésico seguro, é, em doses diferentes, também um antidepressivo que “torna o cérebro mais plástico.
Texto de Marta Martins Silva
Fotografia de Sérgio Lemos
É psicóloga clínica há 25 anos e, depois de ano e meio na equipa do Hospital Júlio de Matos que fundou uma unidade terapêutica com recurso à quetamina, juntou-se à primeira clínica privada em Portugal de psicoterapia assistida por este psicadélico, com ramificações em Londres, Oslo, Trondheim, Nova Iorque, Los Angeles e Toronto.
Quando é que começou a usar quetamina na sua vida profissional?
Estava no serviço de psiquiatria geriátrica do Hospital Júlio de Matos quando fui convidada para um projecto que estava a iniciar e que era a Unidade de Depressão Resistente com Recurso à Quetamina. Desenvolvemos e implementámos essa unidade, e entretanto, junto com outros parceiros, demos início ao projecto privado The Clinic of Change, a primeira clínica privada de psicoterapia assistida por quetamina. Aquando da sua abertura, deixei de fazer parte dessa unidade no hospital público, e dediquei-me por inteiro à clínica privada no âmbito dos psicadélicos. Mas continuo no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (antigo Júlio de Matos) no serviço de Psicologia Geriátrica, no atendimento aos cuidadores dos doentes com demência.
O que a fascinou na quetamina ao ponto de integrar a equipa fundadora da The Clinic of Change?
O que me fascinou e me apaixonou, nesta abordagem, foi a possibilidade, e verifico isso todos os dias, de uma melhoria significativa da vida das pessoas que acompanho, sabe-se que a quetamina tem um efeito disruptivo no cérebro e na mente, não só na forma como a pessoa vivencia e olha para a sua vida e o seu sofrimento, mas também para o modo como se relaciona com as pessoas e com o mundo.
Como assim?
A pessoa inicialmente vive um estado que se chama de dissociação, sente-se a sair do seu corpo, começa a ter uma catadupa de pensamentos, experiências, visões, sensações, associações invulgares e começa a olhar para si própria e para as suas questões de outra forma; não fica presa na narrativa doente, rígida, que caracteriza o pensamento mental menos saudável. Uma pessoa deprimida não consegue ver/sentir-se como uma pessoa com valor, sente-se muitas vezes incapaz de lidar com a sua vida, com o seu trabalho, de cuidar das suas relações. Uma pessoa com problemas de saúde mental, crónicos ou recentes, é uma pessoa que está fixada numa narrativa rígida, numa lógica de desesperança, de incapacidade e de falta de afecto. E a quetamina permite que a pessoa olhe para si própria de outra maneira, que se descole daquela narrativa dogmática negativa na origem do seu sofrimento. Muitas vezes pensa: “Não, eu não sou assim tão incapaz, tão pouco querida, tão pouco amada.” A psicoterapia assistida por quetamina permite ter uma experiência em que o doente não está a sofrer e, por isso, consegue mesmo ver as coisas de outra maneira. Claro que isto só é possível porque é guiada num processo psicoterapêutico estruturado.
O que faz a psicoterapia assistida por quetamina?
Permite, através do efeito que a quetamina tem no cérebro, o chamado aumento de neuroplasticidade (capacidade que o cérebro tem de se adaptar, aprender e fazer mudanças), que a psicoterapia possa actuar e possibilitar mudanças mais profundas e duradouras no doente, mesmo para além do efeito do medicamento. A pessoa durante o processo de tratamento, do ponto de vista psicoterapêutico, faz um percurso em que vai à raiz dos seus problemas e pode assim tentar resolvê-los de uma forma mais eficaz. O que os psicadélicos permitem, em contexto clínico, seguro e controlado, é um aceleramento e aprofundamento do processo psicoterapêutico. Eu tenho uma experiência considerável de psicoterapia e psicanálise e noto que a maior parte das pessoas consegue avanços notáveis com a psicoterapia, mas são de um modo geral avanços demorados e algumas pessoas não têm os benefícios desejados. Aqui, o que acontece é que há um aceleramento desse processo, a pessoa rapidamente é colocada numa relação muito intensa consigo própria e com o psicoterapeuta, e a maior parte das pessoas mostra mudanças consideráveis no tratamento de seis semanas. Este tratamento pode ser revolucionário, permite a muitas pessoas em elevado sofrimento, muitas vezes presas a estados crónicos de depressão, ansiedade ou consumo de substâncias como o álcool, voltar ao seu psiquiatra e psicoterapeuta com outros recursos para lidar com os problemas e com a sua vida.
Mesmo quando estão reunidas todas as condições de segurança pode haver riscos?
Do ponto de vista físico, não. Do ponto de vista psicológico, convém que sejam pessoas altamente experientes e com formação na área dos psicadélicos a acompanhar o processo.
Mas os psicadélicos têm má fama…
Os psicadélicos foram substâncias que tiveram o seu auge nos anos 60, em que eram usadas de forma recreativa, o que levou a situações de uso extremo e houve algumas mortes associadas a esse uso recreativo. Depois deu-se uma proibição porque o consumo de substâncias também estava ligado à contracultura da guerra do Vietname e vieram o Nixon e depois o Reagan e houve uma proibição, e toda a investigação científica que estava a ser feita paralelamente parou. O início do movimento que se chama Renascimento Psicadélico acontece em 2000, com um estudo muito importante em que é comprovada a eficácia da quetamina no tratamento da depressão.
(A entrevista continua na versão em papel.)